Os moitas de Rio Bonito de Cima

Pedro Urano


PT

Resumo: Anualmente, moradores do Vale do Macaé reúnem-se no povoado de Rio Bonito de Cima, quando confeccionam roupas cobertas de folhagens vegetais para brincar o carnaval. A festa, conhecida localmente como o ‘carnaval da moita’, sugere um outro modo de existir e se relacionar com a floresta, além de apontar para práticas imaginais muito antigas que remontam à idade média europeia.

Um ‘moita’, como são conhecidos os brincantes que confeccionam e vestem as roupas vegetais, é uma figura paradoxal. Trata-se de um animal? (Andam como humanos.) Trata-se de um vegetal? (Apresentam-se completamente cobertos por folhagens). Diante da questão da mobilidade, a personagem do homem folheado apresenta uma resposta ambivalente. A capacidade de se deslocar é, afinal, a opção fundamental da qual resultam uma série de desenvolvimentos posteriores, como o sistema nervoso central ou a emergência de uma estrutura visual como o olho dos vertebrados.

Essa diferença primordial entre seres animais e vegetais se materializa em adaptações tão diferentes que mutuamente incompreensíveis. A ausência de estruturas reconhecíveis nas plantas que pudessem ser aproximadas, por analogia, a estruturas semelhantes nos animais, tornaram as primeiras invisíveis para os últimos. “Nós as consideramos uma mera parte da paisagem”, conclui Mancuso (2019, p. 95).

Ao combinar num mesmo corpo morfologias animais e vegetais, o ‘moita’ de Rio Bonito tensiona este fenômeno apontado pelo botânico italiano. Pois se um ‘moita’ faz parte da paisagem, esta passa imediatamente a assumir um caráter dinâmico, movente, animado. A moita que anda, em sua insistente indistinção, nos lembra que a paisagem está viva.

A confecção de uma roupa de ‘moita’ exige habilidade manual, paciência e conhecimento da floresta e suas populações. É preciso saber onde encontrar a espécie vegetal escolhida; conhecer as alianças da espécie escolhida com outras espécies vegetais, animais ou fúngicas (é comum colher inadvertidamente outros seres, como líquens, formigas, besouros e aranhas, carregados junto às folhagens durante a coleta); e, finalmente, é preciso ser rápido, pois, em poucos dias, as folhas vegetais se deterioram e comprometem a fantasia.

Além disso, a performance associada à confecção do traje, digo, o fato do brincante de fato vestir sua roupa vegetal, configura uma atitude em tudo diferente do distanciamento do ambiente representado característico do regime escópico conhecido por ‘perspectivismo cartesiano’ (Jay, 1988) – a prática dos ‘moitas’ substitui a distância entre observador e paisagem por uma ideia de imersão radical no ambiente, uma metafísica da mistura (Coccia, 2018).

Nesta comunicação, apresento resultados parciais da pesquisa que venho desenvolvendo com os brincantes do carnaval da moita, que combina a etnografia visual da prática a uma genealogia da figura do homem folheado que compreende tanto sua antropologia histórica, quanto uma arqueologia do imaginário, num percurso pontuado pela produção de trajes vegetais e performances, registradas em imagens paradas (séries fotográficas) e em movimento (filmes curtos).


Referências Bibliográficas

  • COCCIA, Emanuele. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Florianópolis: Cultura & Barbárie, 2018.
  • HASEMAN, Brad. Manifesto pela pesquisa performativa. In Resumos do 5o Seminário de Pesquisas em Andamento PPGAC/USP / São Paulo: PPGAC-ECA/USP, v.3, n.1, p. 41-53, 2015.
  • JAY, Martin. Scopic Regimes of Modernity. In: FOSTER, Hal (org.). Vision and Visuality: Discussions in Contemporary Art. Seattle: Bay Press; DIA Art Foundation, 1988.
  • MANCUSO, Stefano. A revolução das plantas. São Paulo: Editora Ubu, 2019.
  • MARDER, Michael. Plant-thinking: a philosophy of vegetal life. Nova York: Columbia University Press, 2013.


Biografia


PT

Pedro Urano

Pedro Urano é cineasta-pesquisador. Mestre em História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (HCTE-UFRJ), e doutorando em Tecnologias da Comunicação e Estéticas na Escola de Comunicação (ECO-UFRJ), com bolsa CAPES. Professor substituto na ECO-UFRJ. Realizador dos documentários Estrada Real da Cachaça, HU, da série de TV Inhotim Arte Presente, do longa de ficção Subterrânea, e do curta-metragem Os moitas de Rio Bonito de Cima.


EN

Pedro Urano

Pedro Urano is a filmmaker-researcher. MSc in History of Sciences, Techniques and Epistemology at the Federal University of Rio de Janeiro (HCTE-UFRJ), and PhD Candidate in Communication Technologies and Aesthetics at the School of Communication (ECO-UFRJ), where he held a scholarship from CAPES. Professor at ECO-UFRJ. Director of the documentaries Estrada Real da Cachaça, HU, the TV series Inhotim Arte Presente, the fiction feature Subterrânea, and the shorfilm The bushmen of Rio Bonito de Cima.



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