Imagens invertidas em águas turvas: percepção ambiental em paisagens multiespécies

Ananda Casanova e Ana Maria Hoepers Preve


Palavras-chave: Paisagens multiespécies, Rios urbanos, Fotografia estenopéica, Antropoceno, Percepção ambiental


PT

Rios localizados em paisagens urbanas ao redor do mundo compartilham uma história em comum. O processo de abandono, esquecimento, marginalização e desvalorização que os corpos d'água passaram, em consequência aos projetos de modernização das cidades, produziu não apenas uma perturbação material nas redes hidrográficas, mas também uma ruptura simbólica nos papéis que as águas assumiam na vida cotidiana. Do rio onde se banha, se brinca, se pesca, com o qual se reza e se transporta, passou-se ao rio que não se quer chegar perto, o que cheira mal, o que se rebela, rompe o cimento, invade e destrói. Na mesma medida em que as margens que abrigavam uma multiplicidade de práticas e modos de vida foram sendo retificadas e concretadas, as possibilidades de relação foram interditadas, empobrecendo também nossa capacidade de imaginar outras imagens e narrativas. As águas poluídas que correm nas redes hidrográficas de áreas urbanas em canais de drenagem, arroios retificados e córregos soterrados conformam uma paisagem pouco atrativa de ser apreciada, para além de esforços de denúncia do sujo, do contaminado ou de problemas a serem resolvidos. Nesta época de transição do Holoceno ao Antropoceno, no qual os desastres ambientais dão um contorno muito nítido às relações insustentáveis que humanos têm estabelecido com outros seres e ambientes, histórias exclusivamente humanas pouco nos instigam a imaginar outras respostas para estes tempos de colapso ecológico. Neste sentido, compreendemos as paisagens hídricas enquanto arranjo de espaços vividos humanos e não-humanos (Tsing et al., 2017), na qual se fazem presentes os rastros de muitas histórias de vida e morte a partir das quais – e com as quais - as paisagens emergem, se constituem e se compõem. Surgem, então, questões sobre que formas de responsabilidade são requeridas e como podemos aprender a responder às comunidades multiespécies (Dooren, Kirksey e Münster, 2016) que vêm tomando forma nas paisagens do Antropoceno. Partindo destas provocações, este trabalho se estrutura em torno da percepção ambiental e fabulação de outros modos de cultivar relações com as águas urbanas. No intuito de produzir gestos de atenção com os rios do Antropoceno (Edgeworth e Benjamin, 2018), estudantes da disciplina de Educação Ambiental do curso de Geografia da UDESC foram convidados à experimentação com a fotografia estenopéica e câmeras escuras artesanais junto às águas da bacia do Rio Itacorubi, em Florianópolis. Mais que artefatos históricos, estes dispositivos oferecem modos mais lentos de se experimentar o mundo em uma era de crescente digitalização e automatização da vida. A simples ausência de um visor, no caso da câmera, coloca participantes em presença do que está sendo fotografado, invocando uma forma de abertura estético-afetiva (Bennett, 2022) aos convites feitos pelo lugar ou situação fotografados. A discussão deste trabalho se situa no processo de criação de imagens a partir destes pequenos experimentos de pesquisa e produção de conhecimento situado com as águas.



EN

Rivers located in urban landscapes around the world share a common story. The process of abandonment, forgetting, marginalization, and devaluation that bodies of water have undergone, as a consequence of the modernization projects in cities, has produced not only a material disturbance in hydrographic networks but also a symbolic rupture in the roles that waters played in everyday life. From the river where people bathe, play, fish, pray, and transport, it has become the river that people avoid, which smells bad, rebels, breaks the concrete, invades, and destroys. As the banks that once housed a multitude of practices and ways of life have been rectified and concreted, possibilities for relations have been interdicted, also impoverishing our capacity to imagine other images and narratives. Polluted waters running through urban hydrographic networks in drainage channels, rectified streams, and buried brooks form an unattractive landscape beyond efforts to denounce the dirty, contaminated, or problems to be solved. In this transition period from the Holocene to the Anthropocene, in which environmental disasters give a very clear contour to the unsustainable relationships that humans have established with other beings and environments, exclusively human stories hardly instigate us to imagine other answers for these times of ecological collapse. In this sense, we understand water landscapes as arrangements of lived spaces of humans and non-humans (Tsing et al., 2017), in which traces of many stories of life and death are present from which - and with which - landscapes emerge, are constituted, and are composed. Thus, questions arise about what forms of responsibility are required and how we can learn to respond to the multispecies communities (Dooren, Kirksey, and Münster, 2016) that have been taking shape in the landscapes of the Anthropocene. Based on these provocations, this work is structured around environmental perception and the fabulation of other ways of cultivating relationships with urban waters. In order to produce gestures of attention with the rivers of the Anthropocene (Edgeworth and Benjamin, 2018), students from the Environmental Education course in the Geography Department at UDESC were invited to experiment with pinhole photography and artisanal dark cameras along the waters of the Itacorubi River basin in Florianópolis. More than historical artifacts, these devices offer slower ways of experiencing the world in an era of increasing digitalization and automation of life. The simple absence of a viewfinder, in the case of the camera, places participants in the presence of what is being photographed, invoking a form of aesthetic-affective openness (Bennett, 2022) to the invitations made by the photographed place or situation. The discussion of this work is situated in the process of creating images from these small experiments of situated research and knowledge production with the waters.



Referências

  • Bennett, Jane. (2022). Materia vibrante. Una ecología política de las cosas. Duke University Press.
  • van DOOREN, Thom; KIRKSEY, Eben; MÜNSTER, Ursula. (2006). Estudos multiespécies: cultivando artes de atentividade. Trad. Susana Oliveira Dias. ClimaCom [online], Campinas, Incertezas, ano. 3, n. 7, pp.39-66, Dez. 2016. Available from: https://climacom.mudancasclimaticas.net.br/estudos-multiespecies-cultivando-artes-de-atentividade/
  • Tsing, Anna; SWANSON; Heather; GAN, Elaine; BUBANDT, Nils. (2017). Arts of living on a damaged planet. University of Minnesota Press.
  • EDGEWORTH, Matt, & BENJAMIN, Jeff. (2008). What Is a River? The Chicago River as Hyperobject. In Jason Kelly, Philip SCARPINO; Helen BERRY, James SYVITSKI, and Michel MEYBECK (Orgs.), Rivers of the Anthropocene. University of California Press.


Bio


PT
Ananda Casanova é Doutoranda em Educação junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação/PPGE da Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC. Integra o Grupo de Pesquisa ATLAS: Geografias, Imagens e Educação (UDESC).
EN
Is a PhD student in education in the Postgraduate Program in Education/PPGE at the State University of Santa Catarina/UDESC. She is part of the Research Group ATLAS: Geographies, Images, and Education (UDESC).


PT
Ana Maria Hoepers Preve é Professora Associada do Departamento de Geografia da Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC. É membro do grupo de pesquisa ATLAS.
EN
Is an Associate Professor in the Department of Geography at Santa Catarina State University/UDESC. She is a member of the ATLAS research group.


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